31 Aug 2009

O velho, o rapaz e o burro


Neste fim-de-semana tentei contar a história do velho do rapaz e do burro.
Lá consegui atamancar aquilo, até que a minha Mãe me disse que estava em verso.
Procurei, e está aqui.

O Mundo ralha de tudo,
Tenha ou não tenha razão,
Quero contar uma história
Em prova desta asserção.
Partia um velho campónio
Do seu monte ao povoado,
Levava um neto que tinha
No seu burrinho montado:
Encontra uns homens que dizem:
"Olha aquela que tal é!
Montado o rapaz que é forte,
E o velho trôpego a pé."
"Tapemos a boca ao mundo",
O velho disse: "Rapaz,
Desde do burro, qu'eu monto,
E vem caminhando atrás."
Monta-se, mas dizer ouve:
"Que patetice tão rata!
O tamanhão de burrinho,
E o pobre pequeno à pata."
"Eu me apeio", dis prudente
O velho de boa-fé,
"Vá o burro sem carrego,
E vamos ambos a pé."
Apeiam-se, e outros lhe dizem:
"Toleirões, calcando lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?"
"Rapaz", diz o bom do velho,
"Se de irmos a pé murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se inda nos censuram".
Montam, mas ouvem de um lado:
"Apeiem-se, almas de breu,
Querem matar o burrinho?
Aposto que não é seu."
"Vamos ao chão", diz o velho,
"Já não sei qu'ei-de fazer!
O mundo está de tal sorte,
Que se não pode entender.
É mau se monto no burro,
Se o rapaz monta, mau é,
Se ambos montamos, é mau,
E é mau se vamos a pé:
De tudo me têm ralhado,
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro às costas,
Façamos inda mais esta."
Pegam no burro: o bom velho
Pelas mãos o ergue do chão,
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhando vão.
"Olhem dois loucos varridos!",
Ouvem com grande sussuro,
"Fazendo mundo às avessas,
Tornados burros do burro!"
O velho então pára e exclama:
"Do qu'observo me confundo!
Por mais qu'a gente se mate
Nunca tapa a boca ao mundo.
Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lições;
É mais que tolo quem dá
Ao mundo satisfações."

No entanto quando buscava uma foto para ilustrar encontrei esta que traz associado outro poema sobre esta história, de voz consagrada.

Um velho, um rapaz e um burro na estrada.
Em fila indiana os três caminhavam.
Passou uma velha e pôs-se a troçar:
-O burro vai leve e sem se cansar!
O velho então pra não ser mais troçado,
Resolve no burro ir ele montado.
Chegou uma moça e pôs-se a dizer:
-Ai, coisa feia! Que triste que é ver!
O velho no burro, enquanto o rapaz,
Pequeno e cansado, a pé vai atrás!
O velho desceu e o filho montou.
Mas logo na estrada alguém gritou:
-Bem se vê que o mundo está transtornado!
O pai vai a pé e o filho montado!
O velho parou, pensou e depois
Em cima do burro montaram os dois.
Assim pela estrada seguiram os três:
Mas ouvem ralhar pela quarta vez:
Um rapaz já grande e um velho casmurro.
São cargas de mais no lombo de um burro!
Então o velhote seu filho fitou
E com tais palavras, sério, falou:
Aprende, rapaz, a não te importar,
Se a boca do mundo de ti murmurar.
Sophia de Mello Breyner Andersen

Não sei qual foi o primeiro, sei apenas do qual gosto mais.

6 comments:

lenor said...

É por causa disto que temos uma real gana e fazemos o que nos dá nela sempre que podemos.
:)

fado alexandrino. said...

Sabedoria popular, bem podemos querer agradar a todos, a alguns ou pelo menos a um.
Têm sempre algo para nos apontar.

LI said...

É caso para dizer: quem espera sempre alcança.

Também há a alegoria do homem pobre que se torna rico. É longa para a deixar aqui mas o segredo da mesma é o comentário do amigo: "... pode ser bom ou pode ser mau..."

Carlos said...

Se o segundo aqui transcrito é de Sophia de Mello Breyner, então o primeiro é anterior. Deve ter-lhe inspirado forma mais resumida. Estava num livro da escola primária nos anos quarenta.

Carlos said...

M/obrigado à sua mãe. Levantei-me hoje a pensar no tema, procuro na net, e, bingo! Obrigado tb a Vc, claro.

fado alexandrino. said...

Muito e muito obrigado pela sua visita.