26 May 2013

Tão amigos que nós (às vezes) somos ...


Álvaro, Eugénia e Ana - Os 100 anos de Cunhal, a reportagem de Judite Sousa exibida segunda-feira passada na TVI, mostrou o lado mais íntimo e privado do histórico líder comunista, sobretudo a sua relação com a filha Ana. Nem tudo o que ali foi dito é absolutamente novo, é verdade (Ana Cunhal deu em 2010 uma entrevista à Sábado, em que conta alguns dos pormenores, até aí desconhecidos, dessa relação), mas foi a primeira vez que uma reportagem televisiva foi tão longe na reconstrução da face mais escondida de Cunhal. Judite Sousa, uma vez mais, provou ser uma excelente contadora de histórias, construindo uma narrativa (palavra perigosa, entretanto...) capaz de prender o espectador ao ecrã - 1,5 milhões acompanharam a reportagem exibida no Jornal das 8. Em tantos anos de carreira ela construiu um estatuto difícil de igualar. Alheia ao ruído à sua volta, continua a fazer o seu trabalho. E fá--lo bem. E é isso que verdadeiramente é insuportável para muita gente...
Nuno Azinheira (DN)

O centenário de Álvaro Cunhal, em Novembro, levou a TVI a antecipar festividades e a realizar uma daquelas reportagens que tentam revelar o homem por detrás da figura pública. O que conseguiu foi revelar as baixezas a que o jornalismo (?) hagiográfico pode descer. O trabalho recorreu a depoimentos da irmã, de camaradas de partido, que falam sempre com o tom e a cadência "do Álvaro", o modo pelo qual ainda tratam o eterno chefe, e de interlocutores avulsos, desde o médico Joshua Ruah ao distinto historiador Fernando Rosas, passando por Miguel Sousa Tavares. Não fora o prazer de assistir ao célebre romancista de Equador referir a "áurea" (sic) do "doutor Álvaro Cunhal", qualquer texto evocativo do Avante! teria alcançado idêntico efeito.

Ficámos então a saber que Cunhal era sensível, bem-disposto, atencioso, inteligente, criativo, culto, poliglota e óptimo dançarino. Ou seja, de tanto extrair o "político" da "pessoa", a reportagem deixou apenas um esqueleto enganador e etéreo, que fez o favor de passear, ou dançar, entre os mortais. Do conspirador manhoso que, antes de 1974, perseguia e destruía adversários internos e lutava contra a ditadura em prol de outra ditadura pior, nem uma palavra. Do esboço de tiranete que, depois de 1974, lutou contra a democracia em prol da ditadura do costume, pouquíssimas e, em geral, compreensivas palavras.

Em suma, mitificação em abundância. É natural. Por cá, o fascínio que uma criatura medíocre como Cunhal desperta só encontra paralelo em Salazar. Não vale a pena mencionar os devotos: mesmo os que odeiam o beato de Santa Comba e o estalinista de Seia atribuem--lhes propriedades quase sobrenaturais. Sem tradição de liberdade, os portugueses adoram quem segura a trela e promete mantê-la curta, e não é à toa que, há uns anos, colocaram essas duas recomendáveis peças nos primeiros lugares de um concurso destinado a "decidir" os melhores da nossa história. Nem é à toa que a nossa história deu nisto.
Alberto Gonçalves (DN)

Judite Sousa assinou a enorme reportagem com o título "Álvaro, Eugénia e Ana – os 100 de Cunhal" (TVI). Informação nova? Apenas emoções e detalhes da vida pessoal. A filha de Cunhal, chamada ao título, não constava. Sem novidade política, sem contraditório, a reportagem servia o mito de Cunhal (como mostrou a visita à exposição no PCP, com objectos do líder, semelhante a um santuário com relíquias de santo). Servia também para a construção de outro mito: o da própria Judite Sousa, com acesso privilegiado ao círculo familiar de Cunhal. Na reportagem, apareceu do nada Miguel Sousa Tavares — outro auto-mito — num auto-elogio por ter entrevistado Cunhal. Será que, como dizem no Norte, estas pessoas não se enxergam?
Eduardo Cintra Torres (Correio da Manhã)

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